Susana Bornéo Funck
A ideologia, como o mau hálito, é […] algo que a outra pessoa tem.
Terry Eagleton
Tem me causado enorme inquietação o modo como a expressão “ideologia de gênero” vem sendo usada por grupos ultra-conservadores atualmente no Brasil. Mais preocupante ainda é constatar que ela circula também aqui na UFSC, uma das mais bem conceituadas universidades laicas do país. Gostaria, portanto, de tecer algumas considerações sobre esses dois termos – ideologia e gênero – com o intuito de fazer com que a comunidade acadêmica reflita um pouco sobre eles.
Meu primeiro contato com a ambiguidade da ideologia foi ainda como adolescente, bolsista de um programa de intercâmbio nos Estados Unidos na época da Guerra Fria (sim, faz tempo). Era voz corrente naquele país que os russos deviam ser combatidos porque, mais do que armas, eles tinham uma ideologia, isto é, doutrinavam as pessoas a acreditar no comunismo por meio de uma verdadeira lavagem cerebral. Ora, o que se fazia então nos Estados Unidos? Pregavam-se a democracia e o nacionalismo exacerbado, e, com a mão direita sobre o coração, recitava-se diariamente em todas as escolas do país o juramento à bandeira, juramento que ironicamente proclamava “liberdade e justiça para todos”. Mas isso não era ideologia. Pois a democracia é naturalmente boa, o comunismo é ideologicamente mau. Ou seja, o mau hálito é algo que só os outros têm. Quero deixar bem claro que não estou fazendo aqui uma apologia nem ao comunismo nem à democracia liberal; estou apenas ilustrando como funciona a ideologia.
A palavra gênero, por sua vez, vem da gramática (como em gênero, número e grau). Em algumas línguas (como o alemão), o gênero pode ser feminino, masculino, ou neutro; em outras, polarizou-se entre masculino e feminino. Em algumas línguas, notadamente as neolatinas, é marcado por artigos e desinências; em outras (como o inglês) é menos óbvio linguisticamente.
Como categoria de análise, o conceito “gênero” surgiu em decorrência das lutas feministas na segunda metade do século passado. Em linhas gerais, refere-se aos significados culturais e sociais atribuídos ao feminino e ao masculino em diferentes épocas e lugares, ou seja, cria a possibilidade teórica de pensar feminilidade e masculinidade fora de uma visão essencialista, aquela que, por razões históricas e com base na biologia, separou os seres humanos em duas categorias excludentes e diametralmente opostas: o homem e a mulher. Ora, como podemos perceber facilmente ao considerarmos as pessoas ao nosso redor, existem mais diferenças entre as mulheres e entre os homens do que propriamente entre homens e mulheres. Mas essa polarização serviu, e ainda serve em muitos contextos, para diminuir o valor social das mulheres, uma vez que toda dicotomia inevitavelmente privilegia um dos termos (como em brancos e negros, ricos e pobres, nós e eles, por exemplo).
A categoria gênero permite, por outro lado, pensar mulheres e homens de forma não binária e possibilita uma abordagem interseccional, considerando variáveis como raça, nacionalidade, faixa etária, sexualidade e classe social. Politicamente, gênero tem, portanto, a vantagem de quebrar modelos rígidos de sociabilidade, aqueles que aprisionam tanto homens quanto mulheres em comportamentos padronizados (homem não chora, mulher não diz palavrão e tantas outras regras sociais que aprendemos desde muito cedo).
Mas deixem-me ilustrar o caráter culturalmente construído do gênero com uma historinha (verídica, sim) que ouvi de uma amiga de minha filha. Sua sobrinha de uns quatro anos solta um pum na sala e o pai a repreende: “Que é isso, minha filha? Menina não peida.” “Não peida, pai?” “Não, pode perguntar pra tua mãe.” Ao ouvir a confirmação enfática da mãe, a menina, pensativa, responde: “Mãe, então eu sou homem”. Sem dúvida, Simone de Beauvoir estava certa ao afirmar que “não se nasce mulher”.
O que esse exemplo nos mostra é o caráter aprendido (e que, portanto, não é parte de uma essência imutável) de comportamentos ditos masculinos ou femininos. Modelos de feminilidade e de masculinidade não são da ordem da natureza das coisas. Os significados culturais impostos sobre os corpos, ou seja, as construções de gênero não são fixas nem estáveis.
A partir dessas premissas, a igualdade de gênero e o direito à diversidade sexual passaram a receber grande atenção, especialmente nos movimentos sociais e nas discussões acadêmicas. Os efeitos políticos dos estudos de gênero, embora ainda tênues, já podem ser percebidos nas instituições e nas práticas cotidianas. Atualmente não mais se aceita, por exemplo, na maioria das sociedades ocidentais, que mulheres e homossexuais, entre outros grupos “minoritários”, sejam ironizados ou ofendidos.
Bem recentemente, na Inglaterra, o Professor “Sir” Tim Hunt, prêmio Nobel em Medicina, membro da Royal Society e catedrático do University College of London, foi compulsoriamente levado a se demitir de seu cargo na universidade por seu posicionamento de gênero. Em uma apresentação na “World Conference of Science Journalists”, na Coréia do Sul, o professor declarou: “Três coisas acontecem quando ‘mulheres’ trabalham em laboratórios: você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você e, ainda por cima, choram quando criticadas.” Sugeriu ainda que laboratórios deveriam ser espaços exclusivamente masculinos e agradeceu às colegas mulheres por terem ‘preparado o almoço’.” Apesar de desculpas posteriores, sua instituição, que segue as normas de uma sociedade em que mulheres e homem têm os mesmo direitos e deveres, foi implacável.
Ora, se a moda pega aqui na UFSC, a julgar pelas barbaridades que circulam em algumas redes sociais, certos departamentos ficariam bastante desfalcados.
Não podemos e nem queremos negar que construções e relações de gênero sejam ideológicas e que suas consequências sejam políticas. O gênero é, sim, ideológico. Mas as ideologias são várias; não são apenas as pessoas com quem não concordamos que as têm. Falar, portanto, em “ideologia de gênero” (assim, no singular) é um equívoco. E, se são várias as ideologias de gênero, resta saber a serviço de que (e de quem) elas estão sendo mobilizadas. Se, para alguns, as liberais são perigosas ao pregar a igualdade de direitos, aceitando e tornando visíveis as várias formas de sexualidade humana, para outros (e aqui me incluo), as conservadoras são bem mais perigosas ao negar as diferenças e, especialmente, ao incitar a homofobia e a violência moral e física contra a mulher. Pois é o mau hálito conservador que instiga a barbárie de gênero cometida por grupos como o Estado Islâmico e o Boko Haram, por exemplo, sem deixar de mencionar os crimes homofóbicos em nosso país, e os estupros e humilhações sofridos diariamente pelas mulheres no Brasil.
Que as deusas nos protejam.
Susana Bornéo Funck
Professora aposentada da UFSC